Em um mundo futuro (ou na
visão do que seria o futuro no distante ano de 1927) uma sociedade é marcada
pela abundância para alguns e a miséria extrema para outros. Enquanto os
operários vivem marginalizados, excluídos e explorados em um submundo de
sofrimento e abandono social, uma minoria abastada desfruta das delícias de um
mundo de conto de fadas: Metrópolis, a grande cidade
do futuro, a nova torre de babel, controlada pelo megalomaníaco industrial, Joh
Fredersen, que traz em seu âmago as agruras da industrialização nas sociedades
modernas. Parece ser o destino de toda a criação humana, de toda a condição de
exploração existente e ainda por existir. Tornada rica, incrivelmente poderosa,
e assentada sobre a miséria de milhões de operários, a cidade reluz como o
farol do desenvolvimento, do crescimento econômico, da riqueza sem fim.
Apesar de a história se
passar num futuro distante (que hoje é bem próximo de nós, já que no filme o
ano é 2026) a sociedade mostrada em Metrópolis não está tão longe assim, nem é tão
inalcançável. É na verdade uma caricatura do mundo de meados do século XIX e
início do XX. É a Nova York, a Londres, a Paris, a Viena, a Berlim: As
cidades-sede do capitalismo financeiro mundial, e também da miséria mundial
naquela época. E assim, como essas famosas e gigantescas urbes modernas, a
cidade se divide em dois mundos, dois espaços de convivência, de trabalho e de
poder distintos.
Sobre a superfície, em
edifícios reluzentes e gigantescos, rodeados pelo jardim dos filhos, está a
elite abastada ao lado de seus funcionários mais próximos. Essa classe, a dos
grandes industriais e financistas capitalistas, dispõe de uma excelente
infra-estrutura urbana, com maravilhas arquitetônicas e marcos urbanísticos. A
metrópole da superfície nos lembra os planos traçados para as grandes capitais
do mundo, com teatros, estádios, largas avenidas e gigantescos complexos
esportivos. É também a cidade dos automóveis, os quais são utilizados em larga
escala para movimentação dentro da cidade.
A Metrópolis dos ricos
aproxima-se assim dos frutos das “maravilhas” da corrente City Beautiful, que se
espalhou pelo mundo do início do século XX até os anos 1940. As reformas
urbanas promovidas por esse movimento, no geral, trouxeram melhorias para os
centros urbanos, mas esqueceram dos oprimidos pelo sistema, os colocando às
margens das cidades. Os planos de Speer para a Berlim de Hitler se assemelham
tanto a Metrópolis, que é como se o arquiteto tivesse se inspirado livremente
nela.
Metrópolis ainda bebe da
corrente progressista, de uma forma que deixaria Le Corbusier fascinado.
Grandes torres se projetam no centro da cidade; vias e avenidas destinadas a um
grande fluxo de veículos são encontradas como navalhas a cortar toda a zona
urbana. Na cidade ainda pode-se ver poucos marcos do passado, como se a antiga
cidade ali existente houvesse sido arrasada, e substituída pelos espigões de
concreto, aço e vidro.
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Plan Voisin - Corbusier |
O “Plan Voisin” de Corbusier propunha uma situação parecida para a
Paris de sua época, com a demolição do passado arquitetônico da cidade, e a
substituição do seu tecido urbano por largas avenidas e arranha-céus modernos.
Nesse plano, poucos dos marcos arquitetônicos do passado de Paris sobreviveriam
como a Catedral de Notre Dame e o Arco do Triunfo. Em Metrópolis, o único
vestígio do passado é a gigantesca Catedral da cidade e uma casa esquecida, onde
mora o cientista criador do robô que substituirá Maria e trará o caos para as
ruas da cidade.
O zoneamento, característica
forte do modelo urbanista progressista, como nos projetos e ideias de Garnier,
por exemplo, é também parte integrante da cidade, que é dividida em zonas
específicas: de diversão, de esportes, industrial, moradia e serviços. Dentre
essas zonas há uma que está completamente dissociada da ideia do que seria
conforto urbano. Metrópolis tem uma zona subterrânea, lugar destinado à moradia
da mão-de-obra barata que sustenta o sistema sobre o qual a cidade está
assentada. Ela soa como uma metáfora para o submundo de privações enfrentado
pela classe trabalhadora.
Para o movimento pré-urbanista
sem modelo, esse local é o ponto em que se encontram a miséria e a degradação
humana, o local da noite apavorante. Os indivíduos que ali residem experimentam
todo o tipo de horrores, inclusive a negação de si mesmos. A situação de vida
dos operários é absurda. A ditadura das máquinas, da jornada de trabalho, só
não é pior que a poluição a qual estão sujeitos. As enormes engrenagens do
gigantesco maquinário parecem um antigo Deus furioso, a receber sacrifícios
humanos para a própria glória.
Ali não existem pessoas, mas
sim uma massa compacta e repetitiva, em traje eterno de trabalho. As terríveis
condições de vida e trabalho a que essas pessoas estão sujeitas, são mostradas durante
o decorrer do filme, e ainda mais específicas na fala de um personagem: “Pai,
essas dez horas nunca acabam?”. Os acidentes são comuns, mas tratados com
displicência pelos diretores e pelo próprio Joh Fredersen. A massa de
trabalhadores está sujeita a ser substituída imediatamente para o caso de haver
problemas, o que a torna completamente dependente e submissa aos desmandos do
grande industrial.
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Os sete pecados capitais |
Em um ambiente tão degradante,
é de se esperar que uma revolução acontecesse. Mas a semente de revolta que
Marx gostaria de presenciar, surge de forma tímida e pouco convincente em Metrópolis.
Os trabalhadores não têm consciência de classe, e são controlados pelas ideias
de uma “profetiza” de nome Maria. A moça diz que o mundo é injusto porque “mãos
e a cabeça não se entendem”, e fala sobre a vinda de um mediador que mudará
tudo: “o coração”.
A exploração é retratada no
filme de forma realista, evocando o sofrimento e a quase escravidão vivida por
todos. Metrópolis é comparada a Torre de Babel e ao seu infeliz destino, mas
não parece evocar uma revolução como a feita, no decorrer do próprio filme, pelos
escravos que construíram a malfadada torre. Os trabalhadores, portanto, são
vistos como incapazes de lutar por novas condições de trabalho. Eles deveriam
esperar pela redenção vinda de um “mediador” que mudaria tudo e poria melhores
termos entre patrões e empregados. O mediador surge na pele do próprio filho de
Joh Fredersen, que se apaixona por Maria e experimenta as privações dos
trabalhadores na indústria.
O filme ainda explora os
perigos da ciência. O cientista maluco, sedento por vingança, que quer punir
Frederser por lhe ter roubado o amor da sua vida: Hel. A criação de um robô,
aquele que poderia substituir os trabalhadores, é utilizada de forma nefasta
por Fredersen e pelo cientista, na tentativa de confundir e ludibriar os
trabalhadores. Maria é substituída e o caos se afigura diante de todos.
Mais uma vez o filme se
mostra “morno” diante da revolução. As primeiras greves e revoltas de
trabalhadores se caracterizaram pelo ataque às máquinas e fábricas, pois todos acreditavam
que ambas fossem a causa do desemprego e das cruéis condições sociais as quais
estavam submetidos. Em Metrópolis a história se repete, mas só até certo ponto:
os trabalhadores são incitados a fazer isso pela “Maria robô”, e não se
revoltam contra o patrão. Eles o temem; não estão dispostos a brigar
diretamente com ele. O ataque às máquinas soa como uma tentativa desesperada de
demonstrar força, mas tudo isso se esvai ao se depararem com o industrial.
Assim, a semente da revolta
morre com o confronto cara a cara entre os trabalhadores e o empregador. O
mediador, o filho de Joh Fredersen, consegue fazer os lados dialogarem, se
aproximando das ideias socialistas utópicas de Fourier, e que jamais
funcionariam no sistema Capitalista, visto que o mesmo precisa explorar a mais-valia
dos trabalhadores para continuar existindo.
Há ainda uma mensagem mais
obscura sobre a revolta: os próprios trabalhadores levam o perigo para as suas
casas devido à revolução, com a inundação e destruição de suas moradias, num
claro sinal de que a revolução traria mais perigo que o que todos já
experimentavam.
No fim das contas, o filme
transforma o próprio industrial em um refém da ciência, e passa uma mensagem
vazia de revolução. Não há lideranças entre os trabalhadores, e sim peões num
tabuleiro de xadrez; o rei continua manipulando a todos!
-- Thiago Amorim