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Enrico Dandolo - Reprodução do século XIX |
Figura controversa na História,
Enrico Dandolo é lembrado especialmente pelas suas ações nos eventos que
desencadearam o saque de Constantinopla, em 1204, durante a Quarta Cruzada. Seu
feito foi ainda mais impressionante pelo fato dele estar próximo dos cem anos,
ser cego e ter conseguido destruir um dos mais florescentes impérios de seu
tempo.
Mas a história dele não começa
aqui. Dandolo nasceu, muito provavelmente, no longínquo ano de 1107. Era
veneziano, filho de um importante jurista e sobrinho do Patriarca de Grado, o
mais alto posto na hierarquia da Igreja na República. Coincidentemente, seu tio
tinha um nome homônimo ao seu, motivo pelo qual o nome do futuro Doge de Veneza teve pouca
notoriedade durante muitos anos.
Naquele tempo, o Império Romano
do Oriente, com sede em Constantinopla, havia conseguido aumentar o seu poder e
influência, especialmente pelas conquistas territoriais que os cruzados
obtiveram durante o fim do século XI e início do XII. Apesar da decadência do
país após a famigerada batalha de Manzikert em 1071, a capital imperial
florescia e o comércio no mediterrâneo fluía com intensidade. Esse revivalismo
do Império, conquistado em grande parte pela astúcia do Imperador Aleixo Comneno,
batia de frente com as ambições venezianas de expansão territorial e comercial.
As tensões entre a República e o
Império se intensificaram por volta dos anos 1171-1172, quando um ataque ao
bairro genovês, em Constantinopla, trouxe distúrbios para a Capital. O então
Imperador Bizantino, Manuel Comneno, acusou a República de Veneza de estar por
trás dessas ações, e ordenou que em todos os lugares do Império os cidadãos da
República fossem presos, suas posses confiscadas ou destruídas. O bairro
veneziano de Constantinopla perdeu suas regalias e o povo foi tornado cativo. Esses
acontecimentos trouxeram grande clamor para as ruas de Veneza, e o Doge Vitale
Michiel II resolveu declarar guerra contra os bizantinos (não sem o protesto de
alguns de seus conselheiros, que achavam a ideia de guerra um pouco
precipitada). Para garantir os recursos para essa empreitada, a República se
viu obrigada a criar um imposto extra, que não agradou a ninguém.
Assim, no outono de 1171, uma
frota de 120 navios partiu de Veneza rumo a Bizâncio. Entre os passageiros
dessa viagem estava Enrico Dandolo, como assistente da caravana do Doge, que
pessoalmente liderava a esquadra. Mas ao mesmo tempo em que atacava posições
bizantinas, o Doge resolveu enviar embaixadas para tratar a paz com seus
inimigos.
A situação, contudo, era cada vez
mais caótica, pois coincidentemente após a chegada da primeira embaixada vinda
de Constantinopla, uma peste irrompeu na República. As pessoas acusavam os
bizantinos de terem envenenado os diplomatas venezianos. A doença se espalhou
rápido, atingindo inclusive as tropas na esquadra de guerra.
Desesperado, e sem saber mais o
que fazer, Michiel enviou, como último recurso para a negociação de um tratado,
o já sexagenário Dandolo. Este último, contudo, nem chegou a se encontrar com
Manuel Comneno, pois recebeu uma mensagem ordenando o seu retorno com a frota
pouco depois de desembarcar em Constantinopla. Humilhados, os venezianos
tomaram a drástica medida de linchar o Doge quando do seu retorno para Veneza.
Seus conselheiros escaparam por pouco, entre eles Enrico Dandolo. Este último
passaria a nutrir um rancor muito forte pelo Império, rancor este que, segundo
alguns, o levaram a cometer as atrocidades da quarta cruzada.
Os tempos a seguir foram de
reforma nas leis e nos tratados da República de Veneza. Enrico Dandolo e sua
família continuaram a aconselhar os Doges seguintes, e também a participar de
embaixadas para tratar de problemas diversos de estado. Dandolo viajou para o
Egito (local em que, segundo algumas fontes antigas, os venezianos assinaram um
tratado com Saladino em 1175) para tratar com os normandos sobre a cruzada
contra os muçulmanos; para a Sicília, Tiro, Acre, e diversos outros lugares,
inclusive para Constantinopla, onde seu pai morreu após mais uma tentativa
fracassada de paz com os Bizantinos.
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Dandolo pregando a Cruzada - Gustave Doré |
A experiência que Dandolo
adquiriu nesses anos subsequentes, o preparou para a organização da cruzada que
faria contra Constantinopla em 1204. Nessa época, ele já passava dos 90 anos,
estava cego, devido a uma pancada que recebeu na cabeça durante a viagem
fracassada para Constantinopla de 1172, e já era Doge de Veneza. Chegou ao
posto em 1192, garantindo que o nome da sua família chegasse ao auge, como seu
pai, Vitale Dandolo, sonhara.
Mas a quarta cruzada não foi um
evento digno de ser comemorado, não foi um evento de glória para a cristandade.
Alguns dizem que tudo se tratou de uma vingança pessoal de Dandolo pelos
eventos dos anos 1170, quando Bizâncio humilhou Veneza, e quando supostamente
Enrico havia sido cegado pelo imperador. Essa história era falsa e ganhou força
especialmente após a queda da cidade, quando uma lenda urbana sobre o assunto
correu pelas ruas. Segundo Madden (2003), o relato ganhou fôlego devido a uma
crônica sobre o assunto escrita por Nicetas Choniates, um senador e historiador
bizantino que estava na cidade quando da sua queda para os cruzados. No seu
relato o Imperador Manuel Comneno havia conspirado para que cegassem Dandolo
com vidro.
O fato é que, vingança ou não, Enrico
Dandolo aproveitou uma situação política confusa em Bizâncio, e usando os
cavaleiros que estavam prontos para partir para o Egito, desviou a frota para Constantinopla.
Lá apoiou a entronização de um aliado seu, mas as coisas saíram do controle. Os
cruzados então cercaram e invadiram a cidade, pilhando-a por três dias e três
noites.
O resultado foi um dos piores
saques já realizados na História. Milhares de pessoas morreram pisoteadas,
espancadas, violadas. Os grandes tesouros guardados na cidade foram pilhados e
repartidos entre os soldados. Obras de arte da antiguidade seriam esmagadas e
destruídas pela fúria ensandecida dos agressores. Tamanha foi a violência que a
cidade jamais recuperaria seu esplendor, e o Império começaria o longo e
agonizante declínio para o fim. Segundo os cronistas, até mesmo o altar da
Basílica Imperial de Santa Sofia foi profanado por prostitutas que bebiam no
trono patriarcal. Na Igreja dos Santos Apóstolos, os soldados violaram as
sepulturas dos Imperadores e roubaram tudo o que puderam dos cadáveres. A
grande biblioteca da cidade, que guardava textos clássicos gregos antigos foi incendiada,
sendo completamente destruída e perdendo todo o seu acervo.
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Divisão do Império Bizantino após o Saque de Constantinopla, 1204 |
Às primeiras notícias do saque, a
cristandade ocidental se encheu de glória. Mas conforme o tempo passava e as
notícias sobre os horrores se espalhavam, todos ficaram em choque. O grande
Império estava de joelhos e seu povo dizimado. Dandolo tratou de dividir os
espólios da guerra entre seus aliados e criou o Império Latino como substituto
de Roma. O exílio dos verdadeiros imperadores romanos foram os reinos de
Trebizonda, Épiro e Niceia, de onde viriam para reconquistar Constantinopla em
1261, pelas mãos da dinastia Paleóloga.
Enrico Dandolo chegava já perto
dos cem anos quando os horrores da quarta cruzada aconteceram. Ele ainda viveu
um ano em Constantinopla, empreendendo novas batalhas e guerras, inclusive uma
desastrosa contra os Búlgaros. Demonstrava ter bastante energia e força para
continuar a governar, mas faleceu apenas um ano após a conquista, em 1205. Foi
enterrado na Basílica de Santa Sofia, a mesma igreja que permitiu ser profanada
um ano antes. Seu túmulo permaneceu no local até que os turcos conquistaram acidade e o Império em 1453, sendo destruído durante o processo de conversão da
igreja para Mesquita. O atual cenotáfio de pedra que marca o local de sua
sepultura, foi posto ali durante uma restauração da Basílica no século XIX.
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Túmulo de Enrico Dandolo Basílica de Santa Sofia - Istambul |
Herói ou vilão, Enrico Dandolo
foi um grande mestre no seu tempo. Ascendeu até o mais alto posto de poder que
Veneza podia proporcionar, empreendeu viagens fantásticas por todo o
Mediterrâneo, mesmo já sendo bastante idoso, e com astúcia subjugou um império
milenar. Suas ações, contudo, levaram a um distanciamento ainda maior entre as
Igrejas do Oriente e do Ocidente, cimentando para sempre a divisão entre os
Cristãos. Os resultados a longo prazo foram o fim da proteção da Europa pelos gregos,
a ascensão cada vez mais intensa do Islã, e o bloqueio mediterrânico que viria
a desgraçar economicamente as cidades mercantes italianas. Em busca de ouro e
glória, Enrico Dandolo criou as condições perfeitas para a derrocada da própria
República de Veneza. Ele deve ter sorrido ao concretizar os seus planos contra
Bizâncio, mas se talvez tivesse ajudado a fortalecer o Império ao invés de
destruí-lo, os turcos não teriam chegado às portas de Viena. Infelizmente o
“se” não faz a História...
-- Thiago Amorim
Para saber mais:
Enrico Dandolo and the Rise of
Venice - Thomas F. Madden
História das Cruzadas, Volumes I,
II e III - Steven Runciman