sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Enrico Dandolo – O Doge De Veneza e O Saque de Constantinopla

Enrico Dandolo - Reprodução do século XIX
Figura controversa na História, Enrico Dandolo é lembrado especialmente pelas suas ações nos eventos que desencadearam o saque de Constantinopla, em 1204, durante a Quarta Cruzada. Seu feito foi ainda mais impressionante pelo fato dele estar próximo dos cem anos, ser cego e ter conseguido destruir um dos mais florescentes impérios de seu tempo.

Mas a história dele não começa aqui. Dandolo nasceu, muito provavelmente, no longínquo ano de 1107. Era veneziano, filho de um importante jurista e sobrinho do Patriarca de Grado, o mais alto posto na hierarquia da Igreja na República. Coincidentemente, seu tio tinha um nome homônimo ao seu, motivo pelo qual o nome do futuro Doge de Veneza teve pouca notoriedade durante muitos anos.

Naquele tempo, o Império Romano do Oriente, com sede em Constantinopla, havia conseguido aumentar o seu poder e influência, especialmente pelas conquistas territoriais que os cruzados obtiveram durante o fim do século XI e início do XII. Apesar da decadência do país após a famigerada batalha de Manzikert em 1071, a capital imperial florescia e o comércio no mediterrâneo fluía com intensidade. Esse revivalismo do Império, conquistado em grande parte pela astúcia do Imperador Aleixo Comneno, batia de frente com as ambições venezianas de expansão territorial e comercial.

As tensões entre a República e o Império se intensificaram por volta dos anos 1171-1172, quando um ataque ao bairro genovês, em Constantinopla, trouxe distúrbios para a Capital. O então Imperador Bizantino, Manuel Comneno, acusou a República de Veneza de estar por trás dessas ações, e ordenou que em todos os lugares do Império os cidadãos da República fossem presos, suas posses confiscadas ou destruídas. O bairro veneziano de Constantinopla perdeu suas regalias e o povo foi tornado cativo. Esses acontecimentos trouxeram grande clamor para as ruas de Veneza, e o Doge Vitale Michiel II resolveu declarar guerra contra os bizantinos (não sem o protesto de alguns de seus conselheiros, que achavam a ideia de guerra um pouco precipitada). Para garantir os recursos para essa empreitada, a República se viu obrigada a criar um imposto extra, que não agradou a ninguém.

Assim, no outono de 1171, uma frota de 120 navios partiu de Veneza rumo a Bizâncio. Entre os passageiros dessa viagem estava Enrico Dandolo, como assistente da caravana do Doge, que pessoalmente liderava a esquadra. Mas ao mesmo tempo em que atacava posições bizantinas, o Doge resolveu enviar embaixadas para tratar a paz com seus inimigos.

A situação, contudo, era cada vez mais caótica, pois coincidentemente após a chegada da primeira embaixada vinda de Constantinopla, uma peste irrompeu na República. As pessoas acusavam os bizantinos de terem envenenado os diplomatas venezianos. A doença se espalhou rápido, atingindo inclusive as tropas na esquadra de guerra.

Desesperado, e sem saber mais o que fazer, Michiel enviou, como último recurso para a negociação de um tratado, o já sexagenário Dandolo. Este último, contudo, nem chegou a se encontrar com Manuel Comneno, pois recebeu uma mensagem ordenando o seu retorno com a frota pouco depois de desembarcar em Constantinopla. Humilhados, os venezianos tomaram a drástica medida de linchar o Doge quando do seu retorno para Veneza. Seus conselheiros escaparam por pouco, entre eles Enrico Dandolo. Este último passaria a nutrir um rancor muito forte pelo Império, rancor este que, segundo alguns, o levaram a cometer as atrocidades da quarta cruzada.

Os tempos a seguir foram de reforma nas leis e nos tratados da República de Veneza. Enrico Dandolo e sua família continuaram a aconselhar os Doges seguintes, e também a participar de embaixadas para tratar de problemas diversos de estado. Dandolo viajou para o Egito (local em que, segundo algumas fontes antigas, os venezianos assinaram um tratado com Saladino em 1175) para tratar com os normandos sobre a cruzada contra os muçulmanos; para a Sicília, Tiro, Acre, e diversos outros lugares, inclusive para Constantinopla, onde seu pai morreu após mais uma tentativa fracassada de paz com os Bizantinos.

Dandolo pregando a Cruzada - Gustave Doré
A experiência que Dandolo adquiriu nesses anos subsequentes, o preparou para a organização da cruzada que faria contra Constantinopla em 1204. Nessa época, ele já passava dos 90 anos, estava cego, devido a uma pancada que recebeu na cabeça durante a viagem fracassada para Constantinopla de 1172, e já era Doge de Veneza. Chegou ao posto em 1192, garantindo que o nome da sua família chegasse ao auge, como seu pai, Vitale Dandolo, sonhara.

Mas a quarta cruzada não foi um evento digno de ser comemorado, não foi um evento de glória para a cristandade. Alguns dizem que tudo se tratou de uma vingança pessoal de Dandolo pelos eventos dos anos 1170, quando Bizâncio humilhou Veneza, e quando supostamente Enrico havia sido cegado pelo imperador. Essa história era falsa e ganhou força especialmente após a queda da cidade, quando uma lenda urbana sobre o assunto correu pelas ruas. Segundo Madden (2003), o relato ganhou fôlego devido a uma crônica sobre o assunto escrita por Nicetas Choniates, um senador e historiador bizantino que estava na cidade quando da sua queda para os cruzados. No seu relato o Imperador Manuel Comneno havia conspirado para que cegassem Dandolo com vidro.

O fato é que, vingança ou não, Enrico Dandolo aproveitou uma situação política confusa em Bizâncio, e usando os cavaleiros que estavam prontos para partir para o Egito, desviou a frota para Constantinopla. Lá apoiou a entronização de um aliado seu, mas as coisas saíram do controle. Os cruzados então cercaram e invadiram a cidade, pilhando-a por três dias e três noites.

O resultado foi um dos piores saques já realizados na História. Milhares de pessoas morreram pisoteadas, espancadas, violadas. Os grandes tesouros guardados na cidade foram pilhados e repartidos entre os soldados. Obras de arte da antiguidade seriam esmagadas e destruídas pela fúria ensandecida dos agressores. Tamanha foi a violência que a cidade jamais recuperaria seu esplendor, e o Império começaria o longo e agonizante declínio para o fim. Segundo os cronistas, até mesmo o altar da Basílica Imperial de Santa Sofia foi profanado por prostitutas que bebiam no trono patriarcal. Na Igreja dos Santos Apóstolos, os soldados violaram as sepulturas dos Imperadores e roubaram tudo o que puderam dos cadáveres. A grande biblioteca da cidade, que guardava textos clássicos gregos antigos foi incendiada, sendo completamente destruída e perdendo todo o seu acervo.
Divisão do Império Bizantino após
o Saque de Constantinopla, 1204
Às primeiras notícias do saque, a cristandade ocidental se encheu de glória. Mas conforme o tempo passava e as notícias sobre os horrores se espalhavam, todos ficaram em choque. O grande Império estava de joelhos e seu povo dizimado. Dandolo tratou de dividir os espólios da guerra entre seus aliados e criou o Império Latino como substituto de Roma. O exílio dos verdadeiros imperadores romanos foram os reinos de Trebizonda, Épiro e Niceia, de onde viriam para reconquistar Constantinopla em 1261, pelas mãos da dinastia Paleóloga.

Enrico Dandolo chegava já perto dos cem anos quando os horrores da quarta cruzada aconteceram. Ele ainda viveu um ano em Constantinopla, empreendendo novas batalhas e guerras, inclusive uma desastrosa contra os Búlgaros. Demonstrava ter bastante energia e força para continuar a governar, mas faleceu apenas um ano após a conquista, em 1205. Foi enterrado na Basílica de Santa Sofia, a mesma igreja que permitiu ser profanada um ano antes. Seu túmulo permaneceu no local até que os turcos conquistaram acidade e o Império em 1453, sendo destruído durante o processo de conversão da igreja para Mesquita. O atual cenotáfio de pedra que marca o local de sua sepultura, foi posto ali durante uma restauração da Basílica no século XIX.
Túmulo de Enrico Dandolo
Basílica de Santa Sofia - Istambul
Herói ou vilão, Enrico Dandolo foi um grande mestre no seu tempo. Ascendeu até o mais alto posto de poder que Veneza podia proporcionar, empreendeu viagens fantásticas por todo o Mediterrâneo, mesmo já sendo bastante idoso, e com astúcia subjugou um império milenar. Suas ações, contudo, levaram a um distanciamento ainda maior entre as Igrejas do Oriente e do Ocidente, cimentando para sempre a divisão entre os Cristãos. Os resultados a longo prazo foram o fim da proteção da Europa pelos gregos, a ascensão cada vez mais intensa do Islã, e o bloqueio mediterrânico que viria a desgraçar economicamente as cidades mercantes italianas. Em busca de ouro e glória, Enrico Dandolo criou as condições perfeitas para a derrocada da própria República de Veneza. Ele deve ter sorrido ao concretizar os seus planos contra Bizâncio, mas se talvez tivesse ajudado a fortalecer o Império ao invés de destruí-lo, os turcos não teriam chegado às portas de Viena. Infelizmente o “se” não faz a História...

-- Thiago Amorim

Para saber mais:

Enrico Dandolo and the Rise of Venice - Thomas F. Madden


História das Cruzadas, Volumes I, II e III - Steven Runciman