segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O Barroco

Caravaggio - Pintura de Ottavio Leoni
Toda a tradição artística e cultural criada nos períodos Renascentista e Maneirista continuarão presentes no Barroco, embora essa nova corrente artística crie suas próprias formas de ver o mundo e apreciar a fé. Fruto da contra-reforma em Roma, mas também da ascensão do absolutismo em várias partes da Europa, o barroco se tornará um estilo arquitetônico próprio, que estará presente, a partir de então, em várias partes do mundo, inclusive a América, e até mesmo no longínquo Oriente.

Após a Reforma, a Igreja buscou diversas formas de se manter firme e poderosa novamente. Apesar de ter fracassado em diversas frentes, como na Inglaterra, por exemplo, os católicos triunfaram em vários lugares do norte da Europa, na França, na Itália e na Península Ibérica. Mas os tempos de Papas libidinosos e, até mesmo criminosos, haviam passado. A Igreja conseguiu reformar-se, diminuindo as despesas e as orgias papais.

O momento histórico, entretanto, exigia uma nova forma de mostrar a fé e glorificar a Deus, numa tentativa de transformar os devotos em verdadeiros súditos de Roma. E a melhor forma encontrada para a realização desse ideal pelos artistas barrocos é a teatralização e a espetacularização da própria fé.
A captura de Cristo - Caravaggio
A pintura da época experimentará, através das obras de Caravaggio, essa primeira fase de aprofundamento das sensações. O maneirismo já havia iniciado o processo de teatralização das cenas representadas, inclusive adicionando pessoas comuns aos temas realizados. O Barroco, entretanto, avançará sobre os limites maneiristas, aliando teatralização, realismo e sensualidade. Caravaggio pintará temas religiosos com profunda crueza e realismo, chocando a sociedade da sua época.

Mas o passo já estava dado. O Barroco triunfaria como modelo artístico predominante no século seguinte, trazendo para todos os setores da sociedade sua forma teatral e sensual. As obras artísticas não mais retratarão apenas os ricos e poderosos, mas também pessoas comuns, como plebeus, servos e ajudantes. O próprio Caravaggio utilizará em muitas das suas obras pessoas comuns como modelos para a Virgem Maria, os anjos, santos e o próprio Redentor da humanidade. As diversas obras realizadas em Roma no período são exemplos diversos dessa nova forma de enxergar o mundo.

Na arquitetura, modelos não faltam. A Basílica de São Pedro, a obra que causou a discórdia cristã, é um dos exemplos mais grandiosos da arquitetura barroca religiosa. Apesar de a obra ter avançado do Renascimento até o fim do período barroco, seu interior foi decorado quase que inteiramente sob esse estilo arquitetônico. As diversas estátuas, nichos, “apetrechos e penduricalhos” que enfeitam a basílica deixam qualquer visitante boquiaberto. E o que é mais impressionante, tudo soa perfeitamente harmonioso, mesmo que num caos de elementos decorativos.

Baldaquino de bronze - Basílica de São Pedro
O altar-mor, o baldaquino, a nave central com seus nichos e estátuas colossais, formam um conjunto tão bem acertado, tão profundamente místico e teatralizado, que parecem diminuir a proporção magnânima da basílica. Os “espectadores” que se prostram diante do enorme colosso de bronze têm uma visão enquadrada da Glória de Bernini no altar ao fundo. É como se o arquiteto tivesse colocado o imenso dossel de metal ali, apenas com a intenção de emoldurar o fundo fantástico da construção. O Baldaquino serve também como elemento de conexão entre o piso da basílica e a gigantesca cúpula cem metros acima, sem o qual o espaço ficaria completamente desconectado do resto do conjunto.

Imaginar proezas tão incríveis pode parecer difícil, mas os artistas barrocos conseguiram realizar obras perfeitamente realistas e emocionantes, utilizando para isso de ângulos diversos, formas elípticas e a conexão entre os objetos existentes nos ambientes. Cada estátua presente no local está relacionada à seguinte. Não existe elemento solto ou perdido, todos são conectados entre si. E essa é uma característica presente em todas as obras barrocas.

Praça e Basílica de São Pedro - Vaticano
A Praça diante da Basílica é outro exemplo extraordinário. Terminada a fachada, São Pedro pareceu extremamente pesada para quem a contemplava de fora. A solução encontrada para minimizar esse efeito foi transformar a praça num gigantesco elemento elíptico (o local antes era um imenso retângulo), que com a colunata grandiosa, encimada pelas 140 estátuas de santos e mártires, formam um abraço gigante sobre os devotos. Mas para os desavisados há também um elemento teatral nesse lugar. O escorço, tão conhecido pelos gregos e usado em grande escala pelos renascentistas, dá aqui o ar da graça novamente.

As colunas gigantes não estão centralizadas de acordo com o obelisco localizado no centro da praça. Isso foi feito para tentar disfarçar a diferença de dois graus entre o obelisco e a nave de São Pedro. No ponto em que os dois braços da colunata se encontram com as alas laterais que levam até a entrada da igreja, foi possível cortar o efeito horizontal da fachada. O resultado é um abraço gigantesco nos devotos que ali se encontram, e um enquadramento perfeito para a Basílica ao fundo. A Via della conciliazione[1], logo antes da Praça Pio XII e da Praça da Basílica, maximiza esse efeito.

Mas o Barroco não irá apenas aparecer nas obras religiosas. A França de Luís XIV servirá de terreno para a construção e consolidação do Barroco em outras partes da Europa, fora da esfera de influência italiana. E as realizações ali presentes evidenciarão mais uma vez as enormes transformações pelas quais a sociedade européia passava; o surgimento de um novo mundo centrado no absolutismo monárquico e nos mimos de um rei caprichoso e narcisista, que buscava através da pompa e da teatralidade consolidar seu poder sobre todos os plebeus, nobres e o próprio clero do seu país.
Galeria dos espelhos - Versailles
O palácio de Versailles é a representação em pedra do auge do absolutismo francês, e consequentemente do Barroco naquele país. Transferindo a corte de Paris para essa pequena vila, distante apenas alguns quilômetros da capital, Luís XIV construiu um mundo de sonhos e luxo jamais imaginados. Os súditos que o visitavam com certa frequência, ficavam chocados e extasiados com os objetos, construções, jardins e espetáculos que presenciavam. O Rei existia para governar, era a “cabeça” por trás do país. Nas palavras do próprio Luís XIV: “O estado sou eu”.

As formas arquitetônicas centralizadas, as enormes galerias recheadas de pinturas fantásticas, os diversos jardins, fontes, e até mesmo as roupas das pessoas que ali viviam formavam um espetáculo grandioso. O rei buscava, através do luxo, evidenciar sua importância e o seu poder. Todo esse esbanjamento era garantido pela exploração do povo da França, e no futuro traria sérios problemas para os nobres e para a coroa. As cabeças, literalmente, rolariam anos depois.

Mas o Barroco ainda atravessaria meio mundo antes de finalmente sucumbir. E suas características avançariam pela Holanda, pela Alemanha, pela América, e influenciariam até mesmo os maiores inimigos da fé cristã, os Turco-otomanos, no Oriente.

Grande abraço!

-- Thiago Amorim




[1]  Apesar da via ter sido projetada ainda no século XVII, só foi construída no século XX, a mando de Mussolini, como parte das compensações feitas à igreja pela perda de Roma e dos Estados Papais. Diversos arquitetos contemporâneos à obra não ficaram felizes pelo borgo existente no local ter sido removido para a construção da avenida.  

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Maneirismo

Papa Júlio II - Sua decisão de pôr abaixo a
antiga Basílica e erguer uma nova e fabulosa
construção, acarretou profundas mudanças
no cristianismo ocidental

Num dia de abril do ano de 1506, sob o ar pesado de Roma, um homem observava à colocação da pedra fundamental daquela que seria a maior Igreja do mundo. O homem era o Papa Júlio II, a igreja, a Basílica de São Pedro. O desenvolvimento e a construção desse gigantesco empreendimento envolveria os maiores artistas da Renascença, desde Bramante, passando por Rafael e culminando com Michelangelo, e avançaria ainda mais longe, atingindo o período mais proeminente do Barroco. O Papa jamais veria o prédio concluído, e nunca imaginaria o catalisador no qual ele se transformaria para um dos períodos de maior crise já enfrentados pela Igreja Católica Romana.

Quando da morte do Papa, a igreja tinha uma evolução pequena nas obras, mas gastos exorbitantes, cujos números não paravam de subir. Para garantir o prosseguimento da construção, Júlio II havia ordenado a venda de indulgências que garantiriam a salvação da alma daqueles que contribuíssem financeiramente para a obra. Essa ideia foi seguida pelo Papa seguinte, Leão X, um famoso perdulário dos recursos da Santa sé, cujo pontificado desastroso culminou com as famosas teses de Wittenberg escritas por Lutero.

Lutero - Suas ideias destruíram para
sempre a unidade do cristianismo
no Ocidente
Escandalizados com os absurdos cometidos em Roma, católicos em toda a Europa ficavam cada vez mais impacientes com o que estava acontecendo. Lutero, um monge alemão, tornou-se um símbolo da oposição à forma como a Igreja era conduzida, tendo obtido apoio de diversos príncipes, padres e reis europeus. Era questão de tempo até que uma mudança apocalíptica acontecesse. O resultado mais concreto dessa revolta generalizada contra Roma foi o saque de 1527, no pontificado de Clemente VII. Segundo relatos de cronistas da época, nem mesmo os bárbaros infligiram tantos males à santa cidade. Era consenso entre muitos que, após tantos problemas e imensa revolta popular, a Igreja estava fadada à destruição.

A saída encontrada pelos Papas posteriores aos Médici para enfrentar a crise ficou conhecida como a Contra-Reforma. A Igreja tentaria readquirir sua grandeza por meio de diversas ações e da instituição de um exército de padres devotos à sua causa, a Companhia de Jesus. A inquisição também foi reinstituída.

Mas as coisas não correriam tão bem como se imaginava. As ações de mudança na forma de conduzir a Igreja tiveram seus efeitos, mas não acabaram com o cisma. A partir de então, o Cristianismo ocidental se ramificaria em diversas religiões e seitas independentes entre si, longe do julgo de Roma: Calvinistas, Anglicanos, Luteranos. E essas são apenas algumas das novas doutrinas!

Esse novo período da história humana, que marca uma transição na forma de ver e enxergar o mundo levou o Renascimento a um momento de enrijecimento e, por fim, de transformação, que para muitos ficou conhecido como maneirismo. Era uma época de mudanças surpreendentes. A colonização do Novo Mundo, a ascensão dos grandes impérios coloniais e a destruição das culturas indígenas na América, são apenas algumas delas.

Outro ponto, tão importante quanto os destacados, foi a perda da certeza sobre o modo de ver o mundo. Um novo continente havia sido descoberto, com sociedades, ideais e religiões próprias. O mundo era redondo, e o sol não girava em torno dele! O homem começava a duvidar de si mesmo, da sua capacidade de compreender o universo. Esse momento de dúvida, desespero e agonia é representado pelas novas formas artísticas que surgem.
A última ceia - Tintoretto
Na pintura, as obras começarão a ficar cada vez menos centralizadas num personagem específico, e tomar ares confusos e desconexos. As diversas representações da Santa Ceia no período mostram Jesus Cristo perdido na multidão de personagens ali apresentados, atuando como “mais um entre outros”, como “um de nós”. Na obra “A ceia” de Tintoretto, podemos ver com perfeição esses elementos, já que o ambiente em que a refeição é realizada está repleto de personagens vagando pelo local, comendo e conversando, e com o profeta num plano menos destacado, mais próximo dos mortais que estão ali presentes.
A crucificação - Tintoretto
Até mesmo passagens bíblicas mais impactantes, como a crucificação, tomarão formas menos contemplativas. Veremos diversos personagens que parecem apenas passar pelo local, exércitos que se dirigem a um local qualquer, cenas que parecem continuar, mas que não são representadas completamente na obra produzida. A confusão de sentimentos, da fé e a perda de confiança no conhecimento humano não poderiam ser mais bem representadas.

No campo da escultura teremos mudanças significativas. As obras que, até então, mostravam imagens menos tensas, começarão a deslocar o ponto de representação para o clímax dos temas. Cabeças cortadas, sangue esvaindo, corpos dilacerados, deformados ou completamente dobrados. As personagens criadas beberão da “fonte de Michelangelo”, mas seguirão adiante com posições, formas e enquadramentos mais complexos, mais chocantes.

Villa Rotonda - Palladio
A arquitetura terá uma mudança também, principalmente no que tange à localização dos edifícios. A Europa do fim do Medievo e início do Renascimento legou às cidades suas maiores obras arquitetônicas. A Europa maneirista fará uma nova visita ao campo, com construções de casas, mansões e vilas de caça, de descanso e de passeio. A Villa Rotonda, em Vicenza, é um dos maiores exemplos dessa nova arquitetura, que utilizando o classicismo ao extremo, acaba por criar obras artísticas até mesmo onde antes seria impensado construí-las. Utilizando-se dos ideais vitruvianos e renascentistas, Palladio cria um modelo arquitetônico que será seguido por séculos. O homem burguês, ligado às áreas urbanas, começará a se deslocar ao campo novamente, mesmo que na maioria dos casos apenas para seu próprio divertimento. E o resultado de tantas transformações em todos os campos da cultura européia, culminará num novo estilo, o Barroco.

Grande abraço!

-- Thiago Amorim